Médicos a todo o custo?

Certo dia, todo o trabalho de uma fábrica para abruptamente devido a uma falha energética. A luz apaga e as máquinas param como nunca antes tinha acontecido. Ninguém percebe o que se está a passar e ninguém parece saber resolver o problema.

A única solução é chamar o especialista na área.

O técnico chega, recolhe as informações sobre o sucedido, avalia o espaço e, enfim, abre uma das centenas de caixas de eletricidade (cada uma delas com dezenas de fios e parafusos), aperta um dos parafusos e, subitamente, a fábrica ganha vida – as luzes voltam a acender e as máquinas retomam o barulho habitual.

O chefe de operações fica fora de si de alegria! Agradece imenso o trabalho do técnico e pergunta-lhe o preço do trabalho.

“São 1000€” – diz o ténico.

O chefe, atónito, começa a ripostar: “Como assim 1000€? Só esteve aqui uns minutos. Foi só apertar um parafuso e qualquer pessoa podia ter feito isso. Vai desculpar-me mas preciso de uma conta bem descriminada de tudo o que fez e quanto vale”

“Com certeza” – diz o técnico, começando a escrever:

Apertar o parafuso – 1€

Saber que parafuso apertar – 999€

Vamos deixar a moral da história para reflexão individual.

E isto leva-nos à nossa mais recente aventura. Chamamos-lhe de aventura porque já não fazíamos uma entrevista de emprego há 5 anos e, parecendo que não, há uma certa adrenalina nisto.

Vamos ao contexto?

Nós somos médicos de família e o nosso trabalho a fulltime é no SNS – para o bem e para o mal.

Sabemos que as nossas grelhas salariais não são revistas há mais de 15 anos, o que se traduz numa perda de poder de compra superior a 20%. A progressão da carreira também está congelada há que anos.

Quando ingressamos no SNS, há 5 anos, também já sabíamos disto tudo, é certo. Mas nem toda a gente nasceu para ser empreendedor e trabalhar por conta de outrem também tem as suas vantagens. Não financeiras (claramente), mas tem – mas vamos deixar esta reflexão para outra ocasião. Continuar no SNS é uma decisão bem ponderada e que neste momento continua a fazer muito sentido para nós.

Para além do SNS, foram surgindo algumas oportunidades de trabalho extra que nos permitem arrecadar mais algum dinheiro.

As condições tendem a ser mais atrativas, mas há que fazer contas.

O SNS já nos ocupa 40 horas semanais e estes trabalhos extra podem facilmente sufocar-nos a agenda semanal e todo o tempo útil no geral – por isso têm de valer bem a pena e, acima de tudo, ser bem selecionados.

A verdade é que nunca procuramos trabalho ativamente (nunca tínhamos pensado assim muito em fazer privado), mas as oportunidades foram surgindo inesperadamente por contatos diretos de uma ou outra pessoa – colegas e não.

Já fizemos um pouco de tudo dentro das nossas competências e nunca nos apegamos demasiado porque sempre fomos muito críticos em relação às condições que nos oferecem – se não estamos satisfeitos, saímos sem remorsos.

O nosso trabalho tem um preço, acarreta responsabilidade e exige segurança – para nós e para o doentes que tratamos.

Estudamos 6 anos + 1 ano + 4 anos.

“AH, mas quem é médico gosta de estudar e por isso não deve custar assim tanto”

Custa. Custou. E vai continuar a custar.

Gostar não é sinónimo de ter de trabalhar de graça (ou quase).

Quando o trabalho corre bem, estamos todos contentes e felizes. O médico é o melhor, é uma profissão muito importante, obrigado por ter salvo a minha mãe.

Mas basta correr mal uma vez e já somos as piores pessoas do mundo, nunca devíamos ter ido para esta profissão, não podemos falhar, não valemos nada.

Não é um trabalho que se faça (ou se deva fazer) levianamente.

Vamos voltar às entrevistas?

Então, concorremos a duas empresas de trabalho remoto (para fazermos teleconsulta, portanto), na desportiva, só porque tínhamos curiosidade no tema. Pode vir a ter muito potencial no futuro, e não queríamos ser ignorantes em relação a este assunto.

Neste momento não queríamos preencher mais a nossa agenda, portanto o lema era: se o trabalho for de encontro aos nossos princípios e as condições forem mais favoráveis do que algum dos outros trabalhos extra que temos atualmente (e que estamos satisfeitos), ponderamos a substituição.

Tudo muito bem, as entrevistas foram feitas remotamente (faz sentido) mas mesmo assim a taquicardia teimou em aparecer – normal.

Conversa para lá, conversa para cá, mas então quais é que são as condições mesmo?

 

    • Uma delas pagava 21,5€ por hora (com incentivo extra após a 5ª consulta) e apenas precisavam de preencher escalas ao fim de semana.

Ora bem, o valor é superior ao que pagam no SNS, mas MUITO inferior aos nossos trabalhos extra atuais.

Para além disso, trabalhar o fim de semana não é algo que esteja em cima da mesa por agora.

 

    • A outra delas precisava de médicos em qualquer horário – ok, era uma vantagem em relação à outra – mas pagava nada mais nada menos do que…. 18€ euros à hora. Sendo que seriam realizadas 6 consultas por hora. Não vamos tecer mais comentários sobre isto.

Infelizmente este tipo de trabalho é aceite por muitos de nós, provavelmente porque não têm outra opção ou porque precisam do dinheiro, mas a verdade é que não há nada mais desprestigiante para um profissional do que ver o valor do seu trabalho decrescer desta maneira. No privado.

Mas acreditamos que também há quem aceite porque não fez bem as contas, ou porque acha que não se não aceitar não vai encontrar mais nada, ou que se não for ele a fazer o trabalho vai aparecer alguém quem aceite. É certo que mais alguém vai aceitar, é certo.

Mas acham mesmo que a vosso contributo para a saúde uma pessoa vale 2€? Foi para isso que dedicaram 11 ou mais anos da vossa vida?

Bem, nós recusamos as duas propostas com tranquilidade, alívio e, acima de tudo, com sentimento de que estes NÃOS poderão ter algum impacto nos gestores destas empresas que procuram mão de obra barata a todo o custo.

Depois de nos terem abordado as condições de remuneração, deixamos de nos identificar com toda aquela entrevista e só queríamos desligar – só pensávamos: “Este sítio não é para nós, eles não querem médicos, não querem pessoas como nós, que fazem o seu trabalho com seriedade. Querem fazedores de consultas ao metro e por isso estas entrevistas foram um engano, queremos sair“.

Na semana em que fomos entrevistados, deixamos nas nossas stories uma caixinha de perguntas onde questionávamos os valores que estavam a ser pagos aos médicos nas suas atividades privadas.

Vamos deixar aqui um apanhado das respostas, mas antes vamos falar da nossa realidade.

Para a especialidade de MGF, achamos que são valores muito aceitáveis. Nem sempre foi assim, mas como já dissemos, nunca nos apegamos nem partimos do princípio que não há melhor – deixamos sempre a porta aberta a melhores opções:

 

    • Consultas médicas em clínicas privadas: variável, mas nunca menos de 50€ (uma das clínicas retém 20% e a outra 30%). Ah, e não aceitamos acordos com seguradoras porque não pagam o devido valor pelo nosso trabalho (sim, nós somos estas pessoas chatas);

 

    • Serviço de Atendimento Permanente em clínica privada: 44€ por hora com pagamento extra por consulta após 6 consultas.

 

    • Atividade clínica em entidades de saúde/corporativas: pagam um valor avençado mensal que implica ida à instituição X horas por semana (não muitas) – 50 a 100€ por hora (depende da semana e do seu volume de trabalho)

As vossas respostas:

Óbvio que isto não é um amostra significativa, apesar de termos tido uma participação em grande! Tentamos sistematizar ao máximo.

Não estabelece diferenciação entre especialidades porque não foram apuradas em muitas das respostas.

 

    • % para a clínica nas consultas médicas – variável de 20% a 30%;

    • Preço por consulta: 18€ a 35€ para seguradoras; 30€ a 80€ particulares;

    • Serviços por hora (podem ser consultas, SAPs ou atividades em instituições): 25€ a 50€ por hora (alguns destes com % extra após determinado nº de consultas). Uma das respostas foi 200€/mês num lar onde vai 1 x por mês.

    • Teleconsulta: 18-30€ por hora (alguns com extra após X consultas).

    • Domicílios: alguns 60€ a 70€ por consulta. Outros com o mesmo valor mas por hora. Uma das respostas era 18€/hora;

    • VMER: 30€/hora;

    • Formação: 32€/hora.

Esperamos que este artigo desperte algum espírito crítico entre os colegas.

Se nós não nos valorizamos, então estamos a um degrau da degradação da nossa profissão.

Lembrem-se que não nos pagam para apertar um qualquer parafuso em 10 minutos.

Pagam-nos para apertarmos o parafuso certo.

Se demorar apenas 10 minutos, óptimo na mesma. Não é por isso que devemos achar que foi um trabalho mais fácil ou menos prestigiante. É fruto da nossa dedicação, conhecimento e, acima de tudo, do nosso esforço de bastidores.

Não deixem que isso se traduza em 2€ por consulta, por favor.

Bom ano novo a todos! Não há altura melhor para ponderarmos as nossas opções.

E se acharem que vale a pena a leitura, partilhem! 😀



thumbnail_IMG_1060
Viagem de Natal: Objetivo Disney!
Já há alguns anos que reservamos os últimos dias de férias para uma viagem temática de Natal. Não há...
pexels-ketut-subiyanto-4308051
Despesas (in)Esperadas
“Nem acredito que o IMI é já este mês” ou “Este mês vai ser um mês difícil porque...
pexels-karolina-grabowska-4021775
Médicos a todo o custo?
Certo dia, todo o trabalho de uma fábrica para abruptamente devido a uma falha energética. A luz apaga...
pexels-maitree-rimthong-1602726
Um PPR com ETF lá dentro?
Quer queiramos, quer não, sentiu-se um burburinho diferente nas últimas semanas que teve a ver com o...
pexels-pixabay-164686
Débitos diretos - amigos ou inimigos?
Confessamos que nem sempre pensamos da mesma maneira em relação a ter ou não ter débitos diretos. Nos...

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top